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Um dia nos limites entre a vida e a morte: a linha de frente da Covid-19


24/03/2021
 

Este é um convite para você observar, a partir do ponto de vista de quem vive sobre a transição entre a doença e a cura, nos limites entre a vida e a morte, ainda mais densos neste período de pandemia, a chamada Linha de Frente. 

Pensei nos últimos dias qual seria a melhor maneira de estrear nesta Folha, com histórias que brotam nas salas de emergência e terapia intensiva, onde sobrevivo entre diagnósticos improváveis e situações inusitadas. Pensei honestamente em contar uma fábula de amor, talvez até fugindo do propósito desta página. Resolvi, entretanto, compartilhar o relato de um dia, neste período que é o pior da pandemia (até agora), como se fosse uma página rasgada de diário.
 
Ainda não há sol quando pego o caminho do trabalho. Assumo o meu lugar: médico responsável pela emergência dedicada à Covid-19. A interna é estudante no final do curso de medicina. Ela foi minha aluna no segundo ano, é inteligente e dedicada. Gosto dela desde quando a ensinei a aferir pressão arterial e o lado correto de usar o estetoscópio. Joana I6 (interna do 6º ano) quer ser emergencista.
 
Três residentes compõem o time do dia: Jorge R1 (residente do 1º ano) veio de um país vizinho se especializar no Brasil em medicina esportiva; Mariana R1 veio de uma capital do Nordeste para estudar acupuntura, Maurício R2 (residente do 2º ano), de medicina interna, está na última etapa da metamorfose e é incumbido de cuidar dos casos mais graves. Eu organizo as triagens e discuto as condutas, os ensino a fazerem os procedimentos mais complicados e manejo as vias aéreas.
 
Encontro o pronto-socorro superlotado, com poucos pontos de oxigênio. A sala de emergência contém duas vidas instáveis; os demais com quadros menos graves usam oxigênio em cilindros que se esvaem rapidamente. Não há macas disponíveis na observação, e o último paciente trazido pelo Samu ficou com a maca da ambulância. Discutimos alternativas: é necessário criar leitos onde não existem, é preciso, é urgente.
 
As notícias chegam no celular, falam de iminência de colapso do sistema. Como assim iminência?
 
Meu WhatsApp não para. Chega a notícia de meu primo, filho de meu padrinho, rapaz de 35 anos que está intubado numa UTI em Salvador. Felizmente as notícias são boas dentro do possível. Estável.
 
Estável é uma grande notícia nos dias atuais. Esboço um sorriso lembrando de Marquinho pequeno, com as bochechas proeminentes. Fecho os olhos e tento me conectar com minha madrinha e meu padrinho, mandando um bom sentimento e me sentindo mal por não pode fazer mais.
 
Ligo na UTI de meu hospital para saber de João, homem de 49 anos que intubei há dois dias. Ao perguntar sobre a sua exposição, ele me disse: doutor, sou trabalhador, não pude parar. Pediu que eu garantisse que sua filha teria notícias dele. Antes da sedação me disse: doutor, não me deixe morrer, não me deixe morrer! O procedimento foi executado sem intercorrências, e eu falei pessoalmente para Kimberly que seu pai a amava muito e pediu para lhe dar notícias. Agora João estava com insuficiência renal cada vez mais grave, com chance menor de sobreviver.
 
Uma das almas na sala de emergência pertence a Leopoldo, 84 anos, com pouca alteração de mobilidade por causa de um acidente vascular encefálico. Fora isso era um velhinho pleno. Foi admitido com síndrome respiratória aguda grave, necessitando de altos fluxos de oxigênio. Mauricio R2 esclareceu sobre a gravidade e o risco de morte, falou da possibilidade de intubação, explicou o que seria ser mantido vivo graças à máquina de respirar. Leopoldo foi taxativo: não queria morrer numa máquina dessas, não queria ser submetido a esse sofrimento, e a família concordou –haja analgesia e cuidado.
 
Joana I6 aprende com Maurício R2 a ajustar o ventilador mecânico de Juarez, intubado, aguardando uma vaga de UTI improvável. O residente se esforça para cuidar dos doentes e compartilhar o seu conhecimento; ela apreende e reproduz.
 
Jorge R1 cuida do senhor Yoshi que está com um quadro respiratório atípico esperando o resultado de tomografia. Abrimos juntos a tomografia: sem sinais de Covid-19… O diagnóstico era outro. Os olhos de Jorge R1, no seu 1,90 m, se encharcam. É empatia que chama. O filho de Yoshi quer que contemos apenas para ele o diagnóstico do pai; dizemos que não podemos omitir os resultados de uma pessoa, se ela quer saber não é ético. Jorge R1 engasga e não consegue dizer a Yoshi o que se passa com ele. Eu assumo a palavra e digo de uma forma que ele possa compreender: é câncer de pulmão com metástases. Encaminhamos para oncologia e tentamos amenizar, mesmo quando isso não é possível. Jorge R1 pede para tomar uma água. Permitido! Ele se afasta de cabeça baixa falando consigo mesmo.
 
Mariana R1 aproveita suas habilidades com as agulhas e colhe as gasometrias. Conta de sua mudança para São Paulo neste caos, mas lá também estava o caos. Onde não estava? Ela trata de uma paciente com dor no tórax. Não era coronavírus, não era embolia, era dor da angústia que dói no corpo e na alma.
 
Chega uma ambulância do Samu com mais uma paciente com suspeita de Covid-19, eu aviso à regulação: não tem leito, não tem maca, não tem ponto de oxigênio. Tenso e com alguma vergonha aviso ao colega que não temos condição de recebê-la. Eles dão meia-volta e procuram outro destino.
 
Anselmo está em observação, com ventilação não invasiva. O celular dele toca sem parar. Horas depois, já com catéter nasal, ele toma uma bronca da esposa pelo telefone. Eu vou te matar! Por que não deu notícia?!. Não podia falar por causa da máscara! Não importa, dê seus pulos! O povo acha graça e ele dá uma piscadela.
 
Leopoldo piora muito, Maurício R2 liga para a família e os avisa da iminência da morte. Em minutos chegam dois filhos, uma filha e a esposa. O protocolo não permite despedidas. Rasguem-se os protocolos. Paula, a enfermeira da unidade, assente. E se estivesse no lugar deles? Máscara para todos, eles o observam através de janela de acrílico da sala emergência. Joana I6 de um lado, Maurício R2 do outro. Todos acenam um tchau ritmado, devagarinho, amoroso.  Amor, abre o olho! Adeus, papai! Muito obrigado, pai! Você foi o melhor pai do mundo! Vai com Deus, papai! A gente vai se encontrar em breve, meu amor! Por que ele não abre os olhos?
 
A família chora, as enfermeiras choram, Joana I6 e Maurício R2 choram, os pacientes que aguardam triagem choram. Eu, mais duro, pego mais uma ficha e chamo pelo nome.
 
Começo a explicar o fluxo –só atendemos casos graves. Enquanto falo concentrado para coordenar a respiração e as palavras, meus olhos me traem e inundam. O paciente não grave entende que precisa procurar uma unidade de pronto-atendimento e agradece.
 
Organizo a passagem de plantão, abro no computador a tela da central de regulação para checar as vagas oferecidas para os nossos pedidos: zero vagas cedidas no dia. Passamos os casos, com a retaguarda ainda mais cheia, inclusive com pessoas recebendo oxigênio em cadeiras enquanto aguardam maca.
 
Na saída do plantão um amigo pede suporte por mensagem de telefone. Eu digo que está difícil, mas tentaria ajudar. Ele só quer uma orientação: uma amiga nossa com Covid-19 foi encontrada morta em casa. Ele queria saber o que dizer às duas pessoas que encontraram o seu corpo e tentaram reanimar. Eu mando uma mensagem de áudio soluçada e tremida com algumas sugestões.
 
No carro, antes da partida, repasso brevemente o noticiário e observo os gráficos de evolução da pandemia: recorde de casos e mortes, como minha experiência sugeria. No caminho de casa costumo ouvir Bethânia, Milton ou Racionais, ao sabor do dia. Agora só o silêncio me abraçaria.
 
Em casa encontro minha família, todos tensos com o dia de confinamento. Agora eu e os filhotes nos embolamos. Eles exigem: papai, está na hora de nossa aventura, conta uma história da caatinga!
 
Eu apago a luz e narro coisas de minha infância em Cansanção, sertão da Bahia, tempos em que eu era invulnerável, brincava com onças, caçava lobisomens ferozes e presenciava as façanhas mágicas dos curadores. Aí encontro minha Cordisburgo ou invento minha Macondo. Com as crianças no peito, entre risadinhas e gritinhos de susto, eu pego no sono antes delas. Eu queria contar uma estória de amor. Quem sabe eu tenha contado alguma história de amor?
 
Fonte: Folha de SP
 
 
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